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Por: Victória Resende

Fotos: Victória Resende e Caio Alves

“Nasci e me criei aqui”, afirma Dona Lourdes que, em seguida, desata a falar sobre sua infância, sua família e os momentos marcantes que presenciou no Alagadiço, a primeira comunidade quilombola certificada pela Fundação Palmares no município de Juazeiro, norte da Bahia.

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Ela nos recebe em casa. Seu Gregório, o marido, e Dona Alaíde, sua irmã, espalham cadeiras na pequena sala para acomodar a nossa equipe. Sorri alto, gesticula. Com a palma das mãos, embala uma canção que parecia adormecida em algum cômodo da sua memória: papai, mamãe / nunca peguei no alheio / quando a polícia chegar / tira o meu nome do meio.

Ao ser questionada sobre o nome curioso da comunidade, Dona Lourdes explica que antigamente as moradias eram próximas às margens do Rio São Francisco, mas as constantes enchentes fizeram as famílias adentrar o território. “Meu pai dizia que aqui era meio de mata, de pau fechado”, completa, ao se referir ao corredor de casas que hoje forma o Alagadiço.

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Com Dona Alaíde, relembra a infância. Costumavam brincar com bonecas de pano ou fabricar cada brinquedo, como panelinhas de barro. Eram crianças livres, ribeirinhas. Agora, são mulheres quilombolas. Mas ainda que a certificação garanta o acesso à uma série de direitos, a comunidade, assim como na década de 50, não possui uma escola em funcionamento.

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Dona Lourdes e os irmãos (cinco mulheres e três homens) tomavam aulas com os vizinhos “que sabiam um bocadinho mais”, como conta Seu Gregório, que acompanha atento a narrativa da companheira. De segunda à sexta-feira, o ônibus escolar faz a rota entre o Rodeador, o Alagadiço e a Lagoa, levando e trazendo as crianças de cada comunidade. Mas um dos sonhos da anfitriã é ver o prédio da antiga escola reativado.

Nos seus sonhos cabe toda a sua comunidade: torce por emprego para os moradores ali mesmo, nos arredores. “Eu não tenho mais idade para trabalhar, mas eles têm”. E recorda que saía do Alagadiço para vender verduras em Juazeiro (a caminhada durava cerca de 3h). Além disso, comenta que gostaria que fosse construída uma praça para as crianças brincarem e reunir o pessoal: “Aqui não tem uma coisinha assim, para a gente se divertir”.

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Sorri quando questionada sobre a origem da única paróquia da comunidade, que fica em frente à sua casa. “Nós que fizemos com os nossos braços e punhos”, afirma, orgulhosa. Construída em 2011, por sugestão de um missionário que costumava celebrar as missas da comunidade, o expediente acontecia aos finais de semana: tijolo por tijolo, os moradores ergueram um dos símbolos da sua fé.

Nos convida para conhecer a igreja, seu segundo lar. Faz o caminho vagarosamente ao lado da sua irmã. Contam causos, fazem graça, trazem para o presente personagens do passado. O jornalista uruguaio Eduardo Galeano escreveu que o narrador, o que conta a memória coletiva, está brotado de pessoinhas. Maria de Lourdes dos Santos também está.

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"Papai, mamãe

nunca peguei no alheio

quando a polícia chegar

tira o meu nome do meio".

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