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Por: Cássio Felipe

Fotos: Caio Alves

     Maria Perpétua Batista de Miranda, é uma costureira de memórias. Sua presença irradiante transborda alegria e, em sua companhia, não tem santo que fique desanimado. Ao lado de suas companheiras e com a força de seus ancestrais, luta pelo processo de certificação do Rodeador enquanto território remanescente de quilombo.

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         Não sabe exatamente há quanto tempo mora na comunidade, mas chuta uns sessenta e três para sessenta e quatro anos. Recorda de ter chegado ainda pequenininha, com menos de cinco anos. Seus pais não eram filhos da comunidade. O pai, João Batista Cardoso, mais conhecido como João Leiteiro, nasceu em Pedra Branca, mas morava na Barrinha do Cambão – outra comunidade quilombola de Juazeiro. A mãe, Anália Ferreira Batista, era pernambucana. Seus avós por parte de mãe tomavam conta da fazenda da Família Coelho, uma oligarquia tradicional, que concentra boa parte da economia do Vale do São Francisco. Rapazinho, seu pai vendia leite nessa fazenda. Esse encontro dos dois deu em casamento, gerando três filhos, contando com Dona Maria Leiteira, que acabou herdando esse apelido do pai.

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       Dos seus pais, recorda que eram muito trabalhadeiros. A mãe era muito afetuosa e sempre livrava Dona Maria e seus irmãos das surras do pai. Este, era muito rígido e sempre os cobrou o estudo, mas também o trabalho. Para brincar precisava saber a hora que ele liberava porque não tinha tempo. Era corrido mesmo. O sustento da sua família era o leite, que seu pai ia vender religiosamente todos os dias, em Juazeiro. Inicialmente pegava o leite na fazenda, mas depois comprou seu próprio gado. Plantavam também umas fruteiras na roça. Da labuta, Dona Maria Leiteira lembra que, juntamente com seus irmãos, ajudavam no que podiam porque também precisavam estudar, mas tinha as horas certas do trabalho. Estudavam de manhã na escola, mas quando chegavam, à tarde, iam para o curral colocar ração para o gado e pegar água do rio. Carregava na cabeça ou na carga do jumento. Era preciso encher três tambores grandes de água, que eram carregados por Dona Maria Leiteira e sua mãe.

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- Tinha as vasilhas de cada vaca e cada uma eu chamava pelo nome (risos)!

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   Também iam para a roça molhar os canteiros das frutas e verduras.

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   As outras pessoas da comunidade tiravam o sustento dos canteiros que cultivavam: coentro, pimentão, alface, couve, enfim. Colocavam a carga no jumento e iam vender na feira de Juazeiro. Os que não plantavam canteiros, tiravam lenha para botar nas caldeiras e movimentar os vapores (embarcações). Outros faziam carvão. Mas quase ninguém trabalhava, de fato, de carteira assinada em uma empresa.

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  - Só tinha três pessoas aqui que trabalhava na viação que era João de Ouro, Mathias e Zé, todos já falecidos. Eles viajavam nos vapor. Ah, quando o vapor encostava na beira do rio... A gente tava tudo lá, no ponto, só pra ver o vapor (risos)! O povo ia para São Paulo de vapor. Era um mês para chegar em São Paulo. Ia pra Pirapora e de lá pegava o trem... Agora são horas até São Paulo (risos)!

 

      Tinha muito trabalho, mas as crianças da comunidade arranjavam tempo e com o que brincar. Apesar de não ter energia naquele tempo, o divertimento deles era ir nas casas de farinha.

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  - Quando era dia de desmanchar as mandioca pra fazer a farinha, os beiju, essas coisas assim, a gente ia pra lá e brincava de roda, casamento oculto, essas brincadeira! Hoje em dia, fale pra um menino, uma menina de hoje que ninguém sabe nem o que é! Depois da televisão, quem é que vai brincar de roda? Ninguém. Aí a gente pulava corda que no outro dia não guentava nem caminhar, as perna tudo doeno (risos)!

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      Nos finais de semana, Dona Maria se lembra de receber visitas de parentes para passar as tardes.

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  - Era o dia todinho pulando corda, aí ficava aquela turma! A gente se divertia assim.

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   Naquele tempo, ainda não tinha escola na comunidade, mas as crianças estudavam lá mesmo.

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  - Tinha professor. Primeiro foi a professora Enália, irmã de Durval Barbosa, depois veio Risélia (essa ainda é viva), veio a professora Ivete (a mãe de Ivete Sangalo, também estudei com ela), veio a professora Jandira, veio a professora Marlene (nessa época já era duas professora porque já tinha a turma, assim, de quarta série e de primeira) ... Mas, assim, era tudo em casa!

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"Ah, quando o vapor encostava na beira do rio... A gente tava tudo lá, no ponto, só pra ver o vapor"

   As professoras ficavam hospedadas nas casas das pessoas e lecionavam nas salas de estar.

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  - Cada quem levava seu banquinho no ombro.  A professora Ivete mesmo morou na quarta casa, essa da esquina, era a casa de João Dandá. Não ia todo dia pra Juazeiro, não, só ia pra Juazeiro no dia de receber o pagamento... Era assim!

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  - Então, depois, quando foi a professora Mazarelo, aí ela arrumou um transporte... Uma lambreta! Vinham pegar ela de lambreta, aí ela ia todo final de semana pra Juazeiro, não ia todo dia, não, só nos final de semana! Hoje as professora pega o ônibus ali na esquina do prédio e vão. Agora já tem os transporte que deixa na porta, né? Tem os carros que leva e traz, as coisa tá tudo...  Os que passava da quarta série, ia estudar em Juazeiro e ficavam lá, não vinha também todo final de semana, fazer o que aqui? Ficava lá... Tinha que estudar! Comadre Ovídea mesmo foi estudar, eu não cheguei a ir, não. A outra irmã dela mais velha, Benedita, também foi pra lá e ficou morando na casa daquele Emiliano... Parece que é Emiliano o nome do homem! Sei que a comadre se formou, se casou e até hoje inda mora aqui!  

     Dona Maria Perpétua não deu continuidade aos estudos em Juazeiro, por isso, até o momento, só tinha o ensino fundamental I.

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  - Depois veio uma professora, aqui eu já era veia, já casada, os filhos tudo criado, aí eu fui voltar a estudar! Toda professora que tinha pra lecionar de noite eu ia estudar. Tava fazendo nada, aí a gente ia estudar.

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   Com muito esmero, Dona Maria Leiteira recorda o nome dessa professora: Dulcimeire! Chamava-a de Meire. Na época, ela avisou que ia ter um movimento no Seci, no dia 2 de setembro de 2000. Para participar, cada comunidade deveria levar uma manifestação cultural. No Rodeador, existem várias manifestações culturais centenárias, dentre elas, o “batuque”, hoje, chamado Samba de Veio, manifestação cultural que comunga a pluralidade de identidades que coexistem no território do Submédio São Francisco.

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  - O Samba de Veio quando eu me entendi já existia! Se, por exemplo, tivesse um casamento e tivesse um sanfoneiro, festa dançante, mas o Samba de Veio tava lá de latinha! Tivesse uma missa, tive qualquer movimento, um São Gonçalo... De noite era o Samba! Outros faziam promessa, com Santos Reis, pagava aquelas promessas! Tinha um pessoal que morava numa fazenda, pra fora, pras caatingas! Era todo ano, ela dava o bode. Ia, aí sambava, quando era de madrudadinha, o dia amanhecendo, aí comia o bode, agora vamo pagar o bode pra ir embora... Com samba! Sambava até o sol alto! Era bode e cachaça pra quem bebia cachaça, era aquele vinho de Petrolina... O povo comprava era daqueles coisa grande pros samba. Era bem animado! O samba pra mim... porque nessa época, né, existia, depois foi indo... Essa tia de comadre Ovídia, ela tá até aqui nessa foto, Francisca! Ela era das enfrentante, assim, não sabe? Ela que organizava, ela batia os tamborete... Aí depois ela foi morar em Juazeiro, mas na época do samba ela vinha. Depois ela adoeceu e terminou falecendo, aí pararam, assim, cabou o samba!

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    Esse evento foi importante para reavivar o Samba de Veio do Rodeador. Dona Maria Perpétua foi quem animou o povo:

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  - Minha gente, vamos levar o Samba! Nesse tempo tinha um homem que veio do Salitre que gostava do Samba também, aí incutimo! Eu digo, ó: eu invento, mas não enfrento! Tem que chamar comadre Ovídea e Nezin! Quando terminou, o homem faleceu antes do evento. Sei que pensamos: vamos comprar umas roupa? Isso era eu que inventava! Eu sei que botei todo mundo pra comprar as saias e as blusas! Vamos cada quem com uma blusa branca. Aí sei que nós fomos tudo de blusa branca e as saias era um amarelo, assim, estampado! Aí sei que nós fomos e quando chegou lá, o Sabiá, ali, levou São Gonçalo, Lagoa levou... nem sei mais o que foi que a Lagoa levou. Eu sei que cada quem levou uma coisa. Menina, quando bateu esses tamborete e a gente começou a sambar, esse povo caíram dentro... Olha, fechou! Foi muito elogiado! Sei que a partir disso aí ficaram fazendo convite pra gente. Sei que nós ia, todo mundo era feliz! Depois, vamos fazer uma associação pra registrar o samba! Aí eu fiquei sendo a presidente. Depois, já tá vencido, tem que mudar! Aí eu passei pra Dona Ovídea. Sei que andamos até em Salvador, no teatro Castro Alves! Aí depois caiu. Aí uma hora levanta, outra hora cai, aí é assim.

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"Menina, quando bateu esses tamborete e a gente começou a sambar, esse povo caíram dentro... Olha, fechou!"

   Depois de rememorar o passado, Dona Maria Perpétua percebe que o Rodeador mudou muito desde os tempos de menina. Quando ela chegou tinham poucas casas e as que tinha, eram de taipa, de adobo cru, com teto de palha. Poucas casas eram de tijolo e telha. Com a enchente de 1960, várias casas foram derrubadas e as pessoas tiveram que se mudar para casas de parentes enquanto levantamos e rebocavam suas casas.

  - Nós mesmo fomo pra outra casa, ali, vizinha a igreja pra poder construir essa agora.

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    Hoje, ela nem sabe dizer quantas famílias existem na comunidade porque para além da vila, aos arredores, existem muitas outras casas, que também são consideradas pertencentes à comunidade.

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  - Tem muita diferença. Em tudo, por tudo!

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   Antigamente as pessoas tinham que acordar às cinco da manhã para molhar os canteiros e só depois ir para a escola. Hoje, quem ainda planta canteiro, não precisa mais carregar água na cabeça ou nas mãos porque tem as bombas hidráulicas.

  - O Rodeador era muito mais atrasado, né? Não tá ainda essas coisa, ainda não tá cem por cento, mas melhorou muito do que era antes, muito mesmo! Só que ainda tem muita gente que trabalha pros grandões por aqui: eu mesmo criei meus filho lá nessa roça, dos Coelho. A gente trabalhava direto, não faltava serviço. Quando tirava cebola, a melancia já tava chegando, tirava a melancia, já tinha o melão, era pimentão... Todo dia a gente trabalhava! E ainda ia daqui a pés pra lá, aí quando chegava lá já ia trabalhar, a gente já levava comida, só vinha de tardezinha.

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   Com vinte e sete anos, sete filhos e mais um na barriga, o marido de Dona Maria Perpétua os abandonou. Nessa situação, ela precisou voltar ao trabalho duro na roça.

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  - Tive que me jogar. Se eu pudesse eu ia pra roça, se eu não pudesse eu ia do mesmo jeito. Carregava os maiorzinhos, a maiorzinha ficava com uma reca menor que tinha, num sabe, pra poder nós ir trabalhar! Minha mãe ajudava, mas não podia porque também ia pra roça.

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   Foi assim, trabalhando com dignidade, que Dona Maria Perpétua criou todos os seus filhos.

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  - Olha, eu mudei cebola na Lagoa, no Pau Preto, mudei cebola na roça de Neilton que é pra lá do Pau Preto, no Massangano, na Favela... Depois eu plantei canteiro e ia vender em Juazeiro.

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   Por esses lugares que passou plantando mudas de cebola, costurando a mão as saias do centenário Samba de Véio, Dona Maria Perpétua foi ajudando a semear a força e a resistência das comunidades quilombolas do São Francisco. Hoje, ela é aposentada. Com todos os filhos criados, netos, não precisa mais trabalhar na roça. Infelizmente não pode mais sambar por problemas de saúde, mas é uma das enfrentantes da cultura e da memória do seu povo.

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